Políticas públicas devem considerar as desigualdades raciais
Mercado de trabalho, educação, saúde e meio ambiente são áreas impactadas pela raça e pela cor. Especialistas reforçam importância de ações afirmativas e financiamento
Dados sobre ocupação, informalidade e rendimento no Brasil evidenciam as desvantagens sofridas pela população negra. Mulheres negras, por exemplo, têm uma renda média de R$ 1.908, contra R$ 3.096 das mulheres não negras. Já homens negros recebem R$ 2.390, e homens não negros, R$ 4.013. Negros – homens ou mulheres – ocupam 2,1% dos cargos de gerência e direção. A taxa é de 4,3% para mulheres não negras e 5,5% para homens não negros.
A pesquisa do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), a partir de dados de 2023 do IBGE, foi apresentada nesta segunda-feira (19/8/24) pelo superintendente regional do Trabalho e Emprego em Minas Gerais, Carlos Calazans, um dos palestrantes do Seminário Legislativo Estatuto da Igualdade Racial.
O evento promovido pela Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) e entidades parceiras prossegue até quarta-feira (21).
Ampliar o debate sobre o Projeto de Lei (PL) 817/23, que institui o Estatuto da Igualdade Racial em Minas Gerais é o objetivo do seminário. A proposta, de autoria das deputadas Macaé Evaristo (PT), Ana Paula Siqueira (Rede), Andréia de Jesus (PT) e Leninha (PT), aguarda parecer de 1º turno da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ).
Combate ao trabalho escravo
No tópico sobre mercado de trabalho do painel “Direito à Vida Digna, Acesso ao Meio Ambiente Saudável e ao Trabalho”, Calazans enfatizou que os dados de 2023 são semelhantes aos de 20 anos atrás. Ele chamou a atenção para a importância do combate ao trabalho escravo, que também atinge as populações vulneráveis. “Há pessoas vivendo como se estivéssemos nos séculos 18 e 19”, apontou.
Já no tópico sobre educação, a pedagoga, doutora em Educação e coordenadora de projetos em Educação Escolar Quilombola do Ministério da Educação, Solange Aparecida do Nascimento, saudou a criação da Política Nacional de Equidade, Educação para as Relações Étnico-Raciais e Educação Escolar Quilombola (Pneerq). Essa inciativa busca efetivar a Lei 10.639, de 2003, que determina o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana em todas as escolas.
Entre as ações previstas, está a criação de campi de universidades e institutos federais em comunidades quilombolas. Solange também listou como desafio dessa política estruturante a formação continuada de professores, inclusive quanto aos saberes desenvolvidos pelos povos tradicionais, de forma a manter os alunos nas escolas. Segundo ela, 95% dos estados e municípios brasileiros já aderiram à Pneerq, com compromissos para sua implementação em nível local.
Sobre o quesito educação, a deputada Macaé Evaristo citou o que chamou de “privatização” das escolas públicas em Minas como uma forma de exclusão justamente de crianças e adolescentes negros.
Especificidades da população negra devem ser consideradas
Ao relacionar igualdade racial e saúde, a professora doutora em saúde pública Maria Inês Barbosa criticou a ausência do critério racismo nos dados desagregados de saúde. Ela citou o Plano Estadual de Saúde de Minas, que não tem metas diferenciadas para a população negra, mesmo sabendo que o risco de morte violenta para essa população é duas vezes maior que a de brancos.
“Se não colocamos o dedo na diferença, continuamos com a diferença”, enfatizou. Dados sobre mortalidade materna e infantil também teriam que ser considerados, de acordo com a especialista. Outra crítica feita por Maria Inês foi com relação à falta e representantes de usuários dos movimentos negro e de mulheres negras no Conselho Estadual de Saúde. “Nossa sociedade se construiu em cima da desigualdade. Essa é nossa matriz”, alertou.
A conexão entre racismo e meio ambiente foi tratada pela professora da Unimontes e integrante do Comitê Povos Tradicionais, Meio Ambiente e Grandes Projetos da Associação Brasileira de Antropologia, Felisa Anaya. Ela fez um balanço dos conflitos ambientais e de disputas territoriais que quase sempre penalizam comunidades tradicionais e outras populações vulnerabilizadas.
“No contexto de crise climática, precisamos ter esse recorte. Quem causa e sobre quem ela recai?”, indagou. A pesquisadora citou os desastres de Mariana (2015) e Brumadinho (2019), que atingiram, sobretudo, populações negras, no caso do primeiro, e comunidades indígenas, no segundo. “O Rodoanel, construído com recursos oriundos desses desastres, afetará 89 povos e comunidades tradicionais”, pontuou.
A mestra de notório saber e liderança do Kilombu Manzo, Makota Kidoiale, também abordou essa temática e citou os despejos de territórios quilombolas como um tipo de racismo ambiental. “O Estado nos coloca onde bem quer. Não nos deixam viver onde nos enxergamos. Matam nossas plantas que curam e protegem, como o alecrim”, denunciou.
Mesmo atuando em conselhos estaduais, Kidoiale salientou que eles estão engessados e dominados pelo Estado e que as propostas, frutos de discussões, não são efetivadas.
A deputada Andréia de Jesus acrescentou que muitos parques estaduais de Minas só existem porque as áreas foram preservadas pelos quilombolas e indígenas. No entanto, eles são retirados dessas unidades. Ela defendeu mudanças na legislação sobre o tema.
Ações afirmativas e financiamento de políticas públicas
A importância dessas ações afirmativas para garantir a permanência dos estudantes negros na universidade foi destacada pela pró-reitora de Assuntos Estudantis da UFMG, Licínia Maria Correa no painel “Combate ao Racismo, Ações Afirmativas e Financiamento de Políticas Públicas”.
Para a professora, as iniciativas de reparação histórica precisam ir além da educação, pois devem contemplar também as dimensões de saúde, trabalho, esporte e lazer. “Estamos falando de direitos que deveriam estar garantidos a toda a população”, afirmou.
A pró-reitora da UFMG defendeu que as políticas voltadas para garantir a permanência na universidade não podem ser homogêneas, pois precisam levar em consideração as especificidades de diferentes grupos de estudantes, como mulheres negras, mães solo, indígenas e ciganos.
Ela considera fundamental pensar ações de reparação para alunos da educação de jovens e adultos (EJA), para egressos dos sistemas prisional e socioeducativo e para quilombolas, levando-se em conta as necessidades específicas dos quilombos urbanos e rurais.
O secretário de gestão do Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Sinapir), Yuri Silva, explicou que o governo federal tem se empenhado para que essa instância seja estruturada para atender de maneira adequada às demandas históricas da população negra.
Segundo o secretário, o foco do seu trabalho é a atualização de normativas federais, de modo a fortalecer o Sinapir. A expectativa é de que, até novembro, os decretos e portarias sejam revisados e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva encaminhe ao Congresso Nacional o projeto de uma nova lei de promoção da igualdade racial.
O principal desafio é o financiamento das políticas públicas. Por isso, deve ser feita uma reunião com o Ministério da Fazenda para pactuar as fontes de receita para o Fundo Nacional de Promoção da Igualdade Racial.
As deputadas Macaé Evaristo e Andréia de Jesus apoiaram a criação desse fundo. Conforme destacou a deputada Andreia de Jesus, o maior gargalo das políticas públicas é justamente o financiamento das ações afirmativas.
O cantor Sérgio Diaz, acompanhado por músicos e promotores da cultura afro, fez a abertura cultural dos painéis da tarde desta segunda (19).