Violência contra as mulheres pode impactar além do físico
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Pesquisa revela que a violência pode trazer diversos impactos psicológicos como ansiedade, depressão e uso abusivo de drogas entre as mulheres
Além de ter uma alta taxa de mortalidade feminina no país, a violência contra as mulheres também pode gerar outros agravos. As consequências, geradas por essa violência, podem se manifestar como prejuízos na saúde física, mental e sexual. De acordo com a pesquisa, realizada pela doutora Nádia de Machado Vasconcelos para o Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública, mulheres que convivem cronicamente com a violência estão em maior risco de desenvolver problemas de saúde como a cefaleia, dores abdominal e lombar, distúrbios do sono, fibromialgia e síndrome do intestino irritável.
“A violência traz muitas consequências para a vida das pessoas que a sofrem. A gente fala sempre das consequências físicas, que são as lesões, fraturas, muitas vezes necessitando internações, mas existem também consequências psicológicas, como a depressão, a ansiedade e tentativas de autoextermínio, por exemplo”, pontua a pesquisadora.
“O uso intencional da força física ou do poder, real ou em ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa, ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha grande possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação”.
Além disso, mulheres que convivem com parceiros violentos podem ser forçadas a práticas de sexo inseguro, o que compromete seu planejamento familiar e aumenta a exposição ao risco de contrair infecções sexualmente transmissíveis (IST). De acordo com Nádia, quando as mulheres tentam lidar com a violência e todas as consequências provindas dela, elas podem também desenvolver hábitos de vida não saudáveis, como o consumo de drogas, álcool, tabagismo, etc.
“Existem também algumas outras consequências que vão além da saúde, como perdas de emprego, faltar muito ao serviço. Quando a gente fala de pessoas mais jovens, faltar às aulas, um baixo desempenho escolar, tudo isso está relacionado à violência, que são as consequências que ela traz. Para além das consequências da pessoa, a violência também pode trazer consequências no social”, destaca.
Quando se trata do núcleo familiar, essas consequências também podem impactar na vida de outras pessoas. Por exemplo, quando se trata de mulheres com filhos, essas violências podem levar a um distanciamento das mães com seus próprios filhos, ao as mulheres se isolarem como uma forma de lidar com a violência sofrida. Além disso, essas crianças que crescem em lares violentos, estão propensas a também serem vítimas.
“A gente sabe que crianças que estão em lares em que há violência têm um maior risco de também sofrerem violências ou então de se tornarem agressores quando mais velhos. Já foi visto também que meninas em lares em que os pais praticam violência contra suas mães podem se tornar vítimas no futuro por muitas vezes ver aquela violência como algo natural dentro de casa, desde pequena”, observa Nádia.
A pesquisa ainda mostra que a violência durante a gestação também pode trazer consequências severas, não apenas para a mãe, como também para o feto. De acordo com Nádia, estudos indicam que a gravidez aumenta a vulnerabilidade à violência. Esses estudos mostram que a ocorrência deste agravo durante este período pode levar a desfechos desfavoráveis para a saúde materna, como o aumento de sintomas depressivos, inadequação do pré-natal, complicações obstétricas, afetar a saúde do feto e/ou recém-nascido e a pior dela, pode levar ao aborto.
“Além do aborto, que é a pior consequência, essas mulheres podem desenvolver dores durante a gestação, podem ter gestações que terão partos prematuros. A criança que nasceu antes da hora vai ter grandes consequências associadas, já foi visto que essas crianças podem nascer com baixo peso e são crianças que têm consequências que podem durar a vida inteira por causa da violência que a mãe sofreu”, destaca.
Gênero e violência: qual a relação?
De acordo com a pesquisa, ao analisar o desenvolvimento histórico e contextual das relações de gênero, percebe-se que o domínio do homem sobre a mulher é explicado principalmente pela hierarquização socialmente criada entre os homens. A partir dessa perspectiva, as relações são regidas por dois princípios básicos: as mulheres estão hierarquicamente subordinadas aos homens da mesma forma que os jovens estão hierarquicamente subordinados aos homens mais velhos.
“A gente sabe que a violência é uma forma de demonstração de poder, então ela acontece quando existe uma hierarquização e a pessoa que está no topo da hierarquia tenta dominar uma pessoa que ela considera abaixo. Isso fala muito em relação ao gênero dentro da nossa sociedade, porque existem pessoas que são hierarquizadas como mulheres, o que torna os homens o topo da nossa sociedade, os homens brancos principalmente”, apresenta a pesquisadora.
A violência contra a mulher caracteriza-se como qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como privado. Além de ser considerada uma violação dos Direitos Humanos ao privar as mulheres de seu direito à vida e à integridade física.
Assim, a violência de gênero não se dirige apenas às mulheres, mas também a crianças, adolescentes, idosos e outros grupos considerados dissonantes, como as minorias sexuais e de gênero. “O gênero recorta a violência colocando a mulher como alguém abaixo e por isso é uma violência direcionada a ela. É a mesma coisa com crianças e com o público LGBT. O gênero, visto não só como sexo biológico, mas como expressão do ser, ele vai recortar a violência porque é uma forma que as pessoas que estão no topo têm de tentar dominar”, completa.
“A violência contra a população LGBTQIA+, por exemplo, é uma forma de tentar mostrar para essas pessoas que a orientação sexual delas não é respeitada, que a identidade de gênero delas não é bem aceita. Então, tem um recorte de gênero que transpassa vários tipos de violência e que fala muito sobre essa sociedade machista e patriarcal que a gente vive”, observa Nádia.
Números de pesquisas recentes mostram que, globalmente, ocorreram 88.900 homicídios femininos apenas no ano de 2022, enquanto no Brasil, foram registrados 3.930 homicídios femininos no ano de 2023. Porém, as mortes representam apenas uma fração do problema.
Uma revisão conduzida pela OMS, analisou estudos realizados entre 2000 e 2018, constatou que 30% das mulheres com 15 anos ou mais relataram pelo menos um episódio de violência física e/ou sexual ao longo da vida. Isso significa que aproximadamente 736 milhões de mulheres dessa faixa etária já foram vítimas de violência.
No Brasil, uma pesquisa do Instituto DataSenado revelou que 32% das mulheres com 16 anos ou mais relataram ter sofrido violência ao longo da vida, sendo que 22% afirmaram que pelo menos um episódio ocorreu no último ano.
Maior índice de agressões acontece no ambiente familiar
A pesquisa realizada por Nádia, revela que um aspecto crucial da violência contra as mulheres é que ela acontece, em sua maior parte, nos ambientes doméstico e intrafamiliar, no qual os principais agressores são pessoas próximas, como é o caso dos parceiros íntimos.
Dados utilizados na pesquisa mostram que, globalmente, 26% das mulheres com 15 anos ou mais relataram ter sofrido violência por parceiro íntimo ao longo da vida, enquanto 10% dessas mulheres relataram essa violência nos últimos 12 meses. Já no país, um estudo anterior mostrou que 37,5% de mulheres vítimas de violência atendidas no setor saúde tinham como agressor um parceiro íntimo e 25,4%, um familiar. Além disso, 63,5% das violências ocorreram na residência da vítima.
Quando falamos em feminicídio, 55% das mulheres assassinadas em 2022 no mundo foram mortas por seus parceiros íntimos ou familiares. Da mesma forma, 40% dos casos de homicídio feminino não apresentam informações sobre a relação vítima-assassino, sugerindo que os homicídios na esfera privada podem ser ainda mais prevalentes. No Brasil, em 2023, aproximadamente 41% dos homicídios femininos ocorreram no domicílio.
De acordo com a pesquisadora, muitas mulheres normalizam a violência, principalmente por terem crescido em ambientes violentos, no qual viram a mãe e mulheres próximas serem agredidas.
“Essas mulheres que viram a mãe apanhando do pai, que têm menor acesso a vários programas de renda, a trabalho, elas estão dentro de uma realidade que, muitas vezes, naturalizam o marido violento. São mulheres que estão num ambiente em que a violência dentro de casa é naturalizada, um ambiente em que a cultura “em briga de marido e mulher não se mete a colher” ainda é muito prevalente e elas não conseguem reconhecer que estão sofrendo violência ou que têm direito a proteção”, declara Nádia.
Violência tem forte influência de determinantes sociais
Nádia afirma que como outros agravos à saúde, a violência também tem uma forte influência de determinantes sociais, o que apresenta uma distribuição desigual que agrava a vulnerabilidade social.
Além disso, mulheres negras têm o dobro de chance de sofrer feminicídios, quando comparado a mulheres brancas. Da mesma forma que mulheres com renda de até um salário-mínimo, têm 55% maior prevalência de violência.
A escolaridade também participa dessa equação. De acordo com a pesquisa, mulheres de baixa escolaridade são as principais vítimas de violências recorrentes por parceiros ou agressores do sexo masculino. Nádia afirma que essas diferenças sociais se dão por conta da falta de acesso à informação que essas mulheres encontram.
“Meu estudo percebeu, que não só a violência não letal, mas também a violência letal, acontecem mais na raça regra e nas mulheres de baixa escolaridade”, pontua.
De acordo com ela, esse dado é muito importante aqui no Brasil porque é preciso perceber que as mulheres são um grupo heterogêneo e algumas delas estão em maior risco do que outras. “Então, mulheres negras mulheres de baixa escolaridade estão sim mais expostas à violência e elas precisam de um olhar cuidadoso para elas”, acrescenta.
Para Nádia, esses são apenas alguns fatores que se associam à violência, que deve ser compreendida como um agravo que exige ações intersetoriais para seu efetivo enfrentamento, visando a redução dos impactos que pode causar na vida das mulheres. Para ela, é importante que as políticas públicas sejam criadas pensando principalmente nas mulheres e como isso pode ajudá-las.
“Não adianta fazer uma política pública voltada para as mulheres se a maior parte não tiver um olhar sensível para as mulheres negras de baixa escolaridade. Muitas vezes a política pública da violência dá muito certo pensando em um grupo que não é dessas mulheres, em um grupo maior, um grupo de mulheres brancas, que têm acesso a vários dos seus direitos e essas outras mulheres não conseguem acessar o direito por outras barreiras que elas têm na vida delas”, conclui.
Pesquisa: A Carga da Violência Contra as Mulheres no Brasil
Programa: Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública
Autora: Nádia de Machado Vasconcelos
Orientadora: Deborah Carvalho Malta
Data da defesa: 03 de dezembro de 2024